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Escala espírita: itinerário evolutivo universal
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Escala espírita: itinerário evolutivo universal

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Por Matheus Henrique, de Curitiba. Você pode criticar meu trabalho na seção de comentários ou pelo meu e-mail mathenriquew@gmail.com. (Informação posterior: leitura e explicações em https://www.youtube.com/watch?v=dLWL2d8rJqA.)

Este texto é uma interpretação da escala espírita, isto é dizer — uma reapresentação esquemática com disposições especiais; em nosso caso, de resgate de alcance teórico. Friso, portanto: este é um texto que prima por questões teóricas; a quem nos objetar que deslocamos o Espiritismo de seu campo eminentemente moral, responderemos com uma indicação de leitura: n.os 776 a 802 do Livro dos Espíritos.


Dos caracteres imprescindíveis, determinadores das ordens.

1. Os Espíritos são criados sem conhecimento e com igual aptidão para o bem e para o mal. À medida em que adquirem conhecimento, podem escolher entre o bem e o mal. À medida em que conhecem e experimentam o bem e o mal, deixam de escolher o mal.[1] Quando isso acontece, é que o mal deixou de ser-lhes uma possibilidade real; mas, até que isso aconteça, o mal lhes é também uma possibilidade real.

            Aqueles Espíritos em quem o mal ainda é uma possibilidade real são os Espíritos imperfeitos.

            Aqueles Espíritos para quem o mal deixou de ser uma possibilidade real são os Espíritos bons.

            Aqueles Espíritos que conheceram tudo e adquiriram todas as experiências possíveis, em certo sentido de universalidade, são os Espíritos puros.

Dos caracteres didática- e pragmaticamente válidos, determinadores das classes.

2. Até que um Espírito efetivamente realize sua escolha ou revele desejar efetuá-la, é impossível saber se tal escolha era para ele uma possibilidade real. Não se pode provar positiva e diretamente a ausência, no Espírito, de uma possibilidade real. Portanto, é impossível provar positiva e diretamente que tal ou qual Espírito conserve e sempre conservará apenas o desejo do bem.

3. Assim, nossos únicos critérios realmente lógicos para reconhecimento das ordens acima, tais como descritas acima, consistem dos seguintes elementos:

            a. Indício infalível da realidade de uma possibilidade.

            b. Constatação da atualização de uma possibilidade.

4. Nesse caso, não se pode reconhecer, com rigor lógico, senão a terceira ordem, e, a saber, pela constatação da atualização de uma possibilidade má ou por um indício infalível de sua realidade.

Assim, as únicas características positivas logicamente relevantes para a terceira ordem são as moralmente más. Quaisquer características moralmente boas não favorecem nem a distinção nem o reconhecimento da terceira ordem, sendo, portanto, inteiramente dispensáveis e um inconveniente didático.

5. Pedagogicamente, cabe então no corpo da escala, para reconhecimento da terceira ordem, a identificação de indícios infalíveis de maus desejos (são as más paixões e os maus pensamentos comunicados) e tipos ou padrões de maus atos. (As classes são, a rigor, não subgradações/divisões das ordens, mas modos de manifestação delas.)

6. Esgotados os recursos lógicos, cabe o trabalho científico-filosófico. Se a fase anterior se preocupou com o princípio do terceiro excluído (prova por contradição), agora preocupa o princípio de proporcionalidade. Toda explicação deve ser a mais simples possível em relação à coisa explicada, porque presume-se a máxima proporcionalidade entre causa e efeito. Então, resta apenas a elaboração de modelos tão acentuadamente bons que tornem maximamente improvável a existência, nos Espíritos que se lhes assemelhem, de más possibilidades.

7. A primeira ordem naturalmente transcende nossos meios de verificação, restando-nos pouco mais do que descrições fornecidas pelos Espíritos.

Conclusões.

8. Se se admitir que o propósito da escala espírita é antes prático/didático do que teórico, justificar-se-ia a despreocupação pelo formular distintamente a característica imprescindível dos Espíritos inferiores, que seria, apenas, a mera possibilidade de desejo do mal (o que aliás é óbvio). Contudo, não podemos ser absolutos na negação dessa preocupação, conforme anotamos abaixo no n.o 1 dos materiais sugestivos.

9. Assim se explicaria também que todos os Espíritos comecem pela terceira ordem, pois mesmo que eles jamais venham a desejar o mal, o mal é para eles uma escolha realmente possível: a escolha do mal, para eles, não seria retrogradação.

10. Também se explicaria assim, muito naturalmente e sem saltos, a passagem da terceira para a segunda ordem. Na medida em que se vão consolidando as virtudes, de tal modo que sua ausência seria impossível por retrogradação, vai-se restringindo o campo das más escolhas realmente-possíveis, até que ele acaba, restando apenas o campo autoafirmativo do desejo do bem. Por tudo isso, a escala assim se afirma como um itinerário evolutivo universal.

11. Uma classe de imperfeitos que evoluam “em linha reta” seria formalmente contraditória, pois determinaria essencialmente que tais Espíritos não poderiam falhar (segundo essa classe hipotética) ao mesmo tempo em que são falíveis por essência (segundo a ordem). Tudo quanto se pode dizer é: “até agora não desejou o mal”, ou, depois: “agora é bom/perfeito; mas, quando teve a possibilidade, não desejou o mal”.

(Divagação especulativa secundária: Se conhecêssemos um Espírito nesse ritmo, caracterizá-lo-íamos como Espírito ignorante; aparentemente, não poderíamos dizer dele que é bom, visto que ainda não conheceu o bastante para isso, nem poderíamos dizer que é mau, pois ainda não conheceu o bastante para isso. (Admitimos que o livre arbítrio seja um operar com os conhecimentos.) Por outro lado, não poderíamos dizer que não é bom nem mau, porque a causa de suas escolhas não está nem nos seus conhecimentos, nem nas circunstâncias, mas está nele mesmo. Na verdade, o princípio da bondade ou da maldade está nele, mas ele ainda não pode fazer o mal ou o bem por falta dos conhecimentos que lhe facultem a manifestação de sua maldade ou de sua bondade. Numa palavra, ele não seria nem bom o bastante, ainda, para fazer o bem, nem mau para fazer o mal.

Ora, isto é exatamente o que se afirma da classe dos Espíritos neutros na primeira edição do Livro dos Espíritos.[2] Entretanto, além do ser pouco bom para o bem e pouco mau para o mal, Allan Kardec, na segunda edição, atribui outros traços para a classe. Por que ele faria isso? Por uma razão muito simples: a classe estava tão indeterminada quanto a própria ordem (a espécie tão genérica quanto o próprio gênero) tornando-se irrelevante e até mesmo viciosa. Esses traços acrescidos podem ser interpretados de duas formas. Em nossa opinião, eles não contêm nenhum indicativo moralmente negativo, pois o apegar-se às coisas da Terra é sinal de inferioridade, e não de maldade, assim como os outros traços. Nesse caso, poder-se-ia explicar o incremento como um reparo teórico e, ao mesmo tempo, um enriquecimento prático. A opinião de outros, no entanto, é que os Espíritos neutros são agora maus, embora em grau menos acentuado. Não discutiremos isso aqui; mas, tese concedida, nosso raciocínio faria seu julgamento: como vimos, caracteres bons seriam viciosos na terceira ordem. Assim, seria natural que Kardec desse tendências más à classe dos “neutros”.)

Comentários finais e convenções interpretativas.

Essa leitura da escala espírita é possível, embora em alguns momentos possa parecer forçada ou sê-lo realmente. Por outro lado, talvez ela ofereça mais soluções do que dificuldades, e mais pontos de apoio do que de controvérsia.

A maioria dos problemas de consistência, senão todos, podem ser sanados com duas providências:

1. Observar um paralelo existente entre o conceito de “caractère” e o de “propriedade”. Quando se diz “propriedades”, podem citar-se diversas propriedades prescindíveis sem se citar a propriedade essencial. Mas quando se diz “a propriedade”, a referência se faz à propriedade essencial. Assim, são propriedades da alma o ser inextensa, o estar no tempo e no espaço, a sua possibilidade de relacionar-se com a matéria. Mas a propriedade da alma é o pensamento. “Caractériser” deve ler-se preferencialmente como aquilo em determinada coisa que permite o reconhecê-la como tal. Com isso se explica tanto a ausência explícita do caráter imprescindível dos imperfeitos entre os seus caractères généraux, quanto a preocupação constante pelos caracteres imprescindíveis do Espiritismo no texto Caractère de la Révélation Spirite. Mas o que sugerimos é apenas um paralelo, pois os conceitos não são os mesmos.

2. Dividir os qualificativos “imperfeitos” e “inferiores”, assim como se divide o “superiores”, para entender ora os inferiores em geral, ora os inferiores que desejam ou desejaram o mal.

Este trabalho poderia ser reescrito tendo-se em perspectiva o primeiro significado de “escala”: certa ordenação de graus. Como as classes não seguem um mesmo fundamento de divisão, é evidente que elas não são subgradações das ordens. Assim, as classes têm, primacialmente, mero papel prático ou ilustrativo, sendo que a escala, propriamente dita, têm apenas três categorias: primeira, segunda e terceira ordem. Por isso que a escala espírita deve, para boa inteligência, ser estudada também abstrativamente, isolando-se as ordens das classes — e o valor teorético da escala saltará aos olhos.

Materiais sugestivos menos evidentes.

1. Última frase do n.o 117. Diz que os Espíritos em sua origem possuem todas as “tendências”, as do bem como as do mal, restando seu sucesso ou insucesso ao livre arbítrio. Assim, poderíamos entender a “propensão ao mal”, que consta no n.o 100, como essa simples “tendência”, da qual os bons já estão livres. Acho que se existe um número do livro que busca dar os caracteres fundamentais da ordem, é esse 100.o (dois antepenúltimos parágrafos). Então o caráter distintivo seria esse duplo: propensão ao mal e predomínio da matéria sobre o espírito. Ora, não me parece que esse predomínio constitua um mal, mas apenas inferioridade. (Essa propensão ao mal seria o que denominamos possibilidade real de fazê-lo.)

2. Comentário ao n.o 131; penúltimo parágrafo, sobre os demônios. « Ce sont des Esprits imparfaits qui murmurent contre les épreuves qu'ils subissent, et qui, pour cela, les subissent plus longtemps, mais qui arriveront à leur tour quand ils en auront la volonté. » Ora, pelo emprego do partitivo, julgo lícito concluir que há Espíritos imperfeitos que não murmuram contra as provas que sofrem e por isso vencerão mais depressa; Espíritos imperfeitos que não caem nas ásperas sendas da — “impiedade” (n.o 946).

Não temos a ingenuidade de basear nossa tese nesses trechos, mas eles servem para corroborá-la, juntamente com outros mais evidentes, como os n.os 99 e 113.

Reanálises requeridas.

A aceitação da interpretação por nós proposta tem algumas implicações importantes; queremos ressaltar dentre elas o problema do egoísmo. Ora, a visão comum que se tem dele, como do orgulho, é que são eles anteriores aos outros vícios, tendo uma independência. Ora, para que surja um vício, é preciso que se atualize em certa disposição psicológica o egoísmo; mas isso não significa que o egoísmo tenha alguma atualidade independente deste vício. Não negamos que possa haver egoísmo sistemático; mas sugerimos a possibilidade de que o egoísmo, como o orgulho, possam ser simultâneos com outros vícios, e não anteriores, como se crê. Essa crença comum, aliás, é por demais aporética, porque esses sentimentos seriam tão radicais que permeariam até mesmo os bons atos; e, se mesmo no arrependimento, na piedade, nós víssemos o orgulho e o egoísmo, toda redenção posterior seria interessadamente calculada e, portanto, impossível.


[1] Baseamo-nos em frase do n.o 60 da primeira edição do Livro dos Espíritos: “l’expérience qu’ils ont acquise les empêche de rétrograder”.

[2] É claro que não chegamos nela inconscientemente; mas a demonstração é independente.


Fui surpreso com felicíssima escolha de imagem para meu texto, pelo que fico muito grato.

A escala tem três ordens, e três são as margaridas. A primeira ainda não tem grandes qualidades (ainda não desabrochou), e está envolta na escuridão e no embaçamento da ignorância; a segunda já tem qualidades, mas ainda não são plenas (já é uma flor promissora, mas ainda tímida; há alguma luz, mas se sabe que pode haver mais, e isso gera a inquietante sensação de necessidade do mais); a terceira está em sua plenitude, e nela se observam, com muito brilho, todas as qualidades máximas que a espécie pode alcançar. E todas as flores passam por essas etapas.

Agora, as cores são bem de natureza e leves, como é a realidade do Espírito; e isso gera um contraste com meu texto, que tem uma linguagem bem concisa e acinzentada, por assim dizer. Isso está de acordo com minhas intenções, porque, embora eu não tenha escrito isto, eu não espero que esse texto seja visto como uma tentativa de explicação interna da doutrina, mas apenas como uma perspectiva abstrata. É que eu estou indo fora da doutrina, e propondo e tentando resolver dificuldades que não eram explícitas nela.


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