Primeiras lições de moral da infância I: Aspectos gerais da ética em filosofia
Trecho de palestra de Cosme Massi disponível em seu canal do YouTube.
Transcrição de Rui Gomes Carneiro.
Nós escolhemos como tema para essa manhã o título de uma mensagem por Allan Kardec escrita e publicada na Revista espírita de fevereiro de 1864: “Primeiras lições de moral da infância”.
Como vamos proceder nesse nosso bate-papo?
De início vamos fazer algumas considerações de ordem mais teórica e geral sobre o que é ética, o que é moral, procurando apresentar alguns conceitos que serão essenciais para a compreensão do texto de Allan Kardec.
Depois vamos entrar propriamente na mensagem. Escolhemos alguns parágrafos dessa mensagem de Kardec para fazermos a análise junto com vocês.
Nessa mensagem Kardec entra na chamada “ética prática”, naquilo que nós educadores, pais, precisamos saber fazer com nossos filhos, com nossas crianças no processo de educação moral. Aqui teremos alguma coisa prática para o dia a dia dos pais e educadores no processo de educação de nossas crianças, de nossos filhos.
Existe diferença entre ética e moral?
Essas palavras são muito usadas, mas nem sempre as nós entendemos como deveríamos entender.
Em um dicionário especializado de filosofia, — já que a ética tem sido ao longo da história do pensamento humano uma área da filosofia, — vamos encontrar a seguinte caracterização: a ética pode ser vista como sendo a ciência da conduta, ciência que tem por objeto de estudo a moral. Nessa caracterização genérica, a moral é apenas o objeto de estudo da ciência.
Nesse caso a moral busca estabelecer um conjunto de normas, e cabe à ética discutir as diversas morais. Então, no sentido da filosofia, a ética é mais geral, ela faz uma análise das diversas propostas morais buscando estabelecer uma proposta mais ampla para a conduta humana, leis mais gerais que estariam por trás das diversas morais. Então nós teríamos a moral de Moisés, a moral de Jesus, ou outra moral, e caberia à ética a análise, a discussão dessas diversas morais buscando compreender o que há de comum por trás do próprio uso da moral, ou buscando definir o que é exatamente a conduta moral.
Essa seria, na visão de alguns filósofos, a preocupação da ética, uma visão mais ampla no sentido de análise e de investigação acerca das diversas morais.
Há, entretanto, um outro sentido para a palavra “ética”, que o identifica com o próprio sentido da palavra moral.
Ética e moral seriam sinônimos, e tratariam da conduta humana, do comportamento humano. Esse é o sentido que no século XIX se usava para a palavra “moral” ou para a palavra “ética”, eram trabalhadas como sinônimos, e é o sentido que Kardec vai usar, ele não faz uma distinção entre ética e moral. Os franceses em geral nunca fizeram essa distinção, com exceção do século XX, quando alguns filósofos franceses começaram a propor algumas distinções entre ética e moral, mas era muito comum usar as palavras como sinônimos, e aqui usaremos a palavra ética como sinônimo da palavra moral.
Quando Allan Kardec, na terceira parte de O livro dos Espíritos, apresenta as leis morais, podemos dizer que ele aí está falando de ética, que ele está apresentando a ética espírita. Então não vamos tomar a ética no sentido de ser uma teoria acerca da moral, mas vamos considerar a ética como a ciência da conduta e do comportamento e vamos usar a palavra “moral” como sinônimo. Então para nós a moral também será a ciência da conduta e do comportamento.
Quando falamos em conduta humana, estamos diante de uma coisa muito ampla: ela envolve muitos contextos e situações, e a ética não vai tratar de todas. Então nós vamos considerar, quando falarmos de ética, uma questão que é fundamental, que é a questão do dever.
Nós vamos ver que a ética vai se preocupar em responder a esta questão: por que eu deveria fazer isso?
Há na questão ética um elemento chave, central, dada pela palavra “dever”, por que eu deveria fazer isso? Essa vai ser a palavra mais importante para explicarmos, mais adiante, o texto de Allan Kardec.
A conduta humana é muito variável. Existem pessoas que em determinados contextos utilizam o desejo ou o gosto. Por que alguém escolheu determinada roupa? Por que você escolhe comer determinadas coisas? Por que você gosta de comer chocolate e outro escolhe outra coisa? Há muitas opções da conduta humana que nada têm a ver com o dever, são condutas que envolvem o desejo, o gosto, não têm nenhum sentido de dever por trás. Esta não é uma conduta com que a ética se preocupa, pois a ética não se preocupa com a roupa que você fez, nem com por que você gosta do verde, ou do vermelho, do vestido ou da calça; isso é irrelevante do ponto de vista ético. Não se trata de uma questão ética, trata-se de uma questão de gosto ou de desejo.
A ética não vai trabalhar esse tipo de questão, já que não envolve o dever no sentido que vamos tornar preciso no decurso dessa exposição.
Por outro lado, existe o tipo de conduta que envolve o interesse. Por exemplo, alguém vai comprar pão na padaria; por que se compra pão na padaria? Porque você está interessado em comer pão. Quer seja interessado para sua alimentação, quer seja porque você gosta de pão. Então compramos pão na padaria por interesse. Não há nessa conduta nenhum elemento ético, você foi lá comprar por interesse.
A dona da padaria vende pão também por interesse. Ela não vende pão por caridade ou por dever ético, ela vende o pão porque tem interesse em recursos necessários para manter sua própria vida, ela cobra o pão e ao dinheiro que receber vai dar o destino que bem entender. Então há nas relações de comércio, ou na relação econômica, uma relação de interesses, e não há nisso nenhum problema, é uma relação corretamente interessada.
Mas não é uma conduta ética, porque não se trata de uma conduta de dever. Não se compra pão porque se deve comprar pão, compra-se porque se tem interesse, por que se está com fome, por que se gosta, e não porque se deva comprar pão.
É claro que o indivíduo deve cuidar da sua sobrevivência, há um dever com respeito à vida, mas esse dever com respeito à vida poderá significar um conjunto de condutas que não são condutas éticas; você tem o dever de preservar a própria vida, mas daí não decorre que você tenha o dever de comprar pão, pois você pode preservar a vida comendo um conjunto de alimentos, e mesmo que você tenha o dever de consumir alimentos, você não tem o dever de ir nessa ou naquela casa de comércio. É uma questão de interesse, de opção, você escolhe a padaria cujo preço seja mais barato, ou que esteja mais próximo de sua casa.
Então as condutas humanas são muito variadas, e envolvem um conjunto de relações que não são relações apenas éticas. É claro que você pode comprar pão na padaria e ao mesmo tempo fazer uma violação da ética nessa conduta interessada, por exemplo, pagando com dinheiro falso; então, nessa conduta de comprar o pão também haveria uma conduta que vai contra a ética, porque você viola o princípio ético de honestidade. Então é claro que se pode em uma mesma conduta humana ter muitos elementos envolvidos, inclusive o elemento ético pode estar presente.
A partir daí é preciso que a gente aprenda a não dividir as condutas humanas em apenas dois grupos; é muito comum a gente, inexperientemente, fazer a divisão em conduta moral ou imoral, e quem não age moralmente agiria imoralmente. Não, comprar pão na padaria não é uma conduta moralmente correta, nem moralmente incorreta, ou imoral, porque se trata de uma conduta que nada tem a ver com a moral, com o dever.
Então as condutas humanas podem ser vistas do ponto de vista da ética como condutas morais, condutas imorais, ou seja, que vão contra a moral, e condutas amorais, ou seja, que nada têm a ver com a moral. Se perguntarem: É correto moralmente comprar pão na padaria? A gente diria: Isso não é uma questão moral; é como se me perguntasse: É vermelho o número dois? A questão não se coloca, os números não são vermelhos, amarelos, pretos ou brancos, então não cabe perguntar se o número dois é vermelho ou amarelo. Essa questão não é pertinente e, usando uma linguagem do grande filósofo francês Pascal, é uma confusão de ordens, e esse tipo de confusão não deve ser feita.
Então comprar pão na padaria não é, do ponto de vista moral, uma conduta moral, então não cabe perguntar se é uma conduta correta ou incorreta do ponto de vista moral; ela não diz respeito à moral, então não cabe esse tipo de questão sobre relações comercias honestas.
A mesma coisa se aplica quanto a gostar de comer chocolate e outro não gostar de chocolate! Aquele que come chocolate está tendo uma conduta moral? Nas condutas de gosto não cabe perguntar se é moral ou imoral; trata-se de uma conduta amoral, que nada tem a ver com a moral, então não é correto perguntar se é correto do ponto de vista moral.
Muito da conduta humana nada tem a ver com a moral. Tem a ver com costumes, com práticas sociais, com gosto, com interesse. E a moral não trata delas! Quando a moral não trata delas, não significa que elas sejam imorais: há uma grande diferença! Uma conduta é imoral quando ela viola uma regra moral, e não porque ela simplesmente não diga respeito à moral.
É muito importante que aprendamos a fazer essas distinções, e que a gente não ache que a moral vai responder sobre qualquer ação humana. Não, a moral vai responder por aquelas condutas que envolvem a pergunta que foi colocada: porque eu deveria me comportar dessa ou daquela maneira, quer dizer, envolve uma noção de dever que vai ser central para a moral; não envolve, portanto, questões de gosto, ou questões de interesses ou de outra natureza.
Claro que numa questão de gosto, numa questão de interesse, dada a complexidade da conduta humana, podem estar presentes ali condutas morais escondidas. Por exemplo, você pode ter um gosto, e na realização daquele gosto ter uma conduta moral ou contra a moral, mas é apenas porque a complexidade da conduta humana pode envolver, em uma mesma situação, elementos de gosto, elementos de interesse e elementos de dever. Mas é só por isso. As condutas de gosto, em geral, ou de interesse em geral, não são condutas que digam respeito à moral.
Então não cabe à ética dizer como a economia deve funcionar, não cabe à ética dizer como a ciência deve funcionar. As ciências econômicas, sociais, etc. têm o seu próprio campo de investigação, e a ética tem seu campo específico, que é a noção de dever.
Para isso precisamos entender muito bem o que significa “dever”.
Diante de uma realidade que exija uma tomada de decisão, poderíamos questionar: “Por que eu devo me comportar de determinada maneira?”
Que resposta deveríamos dar? Como a ética responde a essa questão do dever? Em geral vamos encontrar três respostas possíveis para essa questão — “Por que eu devo me comportar de determinada maneira?” — que vão dar origem a correntes éticas ou de moral diferentes.
Assim, quando um ser humano vai agir, ele escolhe uma conduta da qual ele possa justificar a razão de ser.
Um indivíduo, ante a necessidade de escolha de uma conduta, encontra três possibilidades centrais que vão permitir responder à questão do porquê dever agir de determinada maneira:
Na primeira possibilidade, o indivíduo que vai fazer uma escolha de conduta se apoia em alguma lei moral, em alguma lei ética que oriente sua escolha. Por exemplo: não devo matar, devo ser honesto, devo respeitar a liberdade de consciência. Então o indivíduo pode definir sua conduta a partir de um conjunto de leis.
Outra possibilidade para orientar a escolha de uma conduta ética, não tendo em vista especificamente leis, é a que chamaremos aqui de busca da felicidade; o indivíduo busca a felicidade de todos. Mesmo que não tenha uma lei moral associada, define-se a conduta como sendo ética a partir de um certo conceito de felicidade, como veremos adiante.
Na terceira possibilidade, a escolha do comportamento não leva em conta nem leis nem a felicidade: é determinado caráter que define a conduta; como o homem virtuoso se comporta assim, então eu devo me comportar assim também, por que essa é a expressão da virtude e do caráter. Então se poderá apoiar na noção de caráter ou de virtude para tomar uma decisão.
*Observação. O texto acima foi retirado de uma exposição de viva voz. Como todo ensino oral, esta colocação pode não ser tão rigorosa com os sentidos das palavras, por efeito da proximidade entre as pessoas que conversam. É preciso, por isso, considerar que as definições dadas podem ser provisórias, e que alguns termos são usados em sentido figurado. Em todo caso, o fundo da mensagem não deixa equívocos.
Cosme Massi é Físico, Doutor e Mestre em Lógica e Filosofia da Ciência pela UNICAMP. Foi professor, pró-reitor e diretor de diversas universidades no Brasil. Ganhador do Prêmio Moinho Santista em Lógica Matemática. Escritor, palestrante e estudioso das obras e do pensamento de Allan Kardec há mais de 30 anos. Idealizador do IDEAK (Instituto de Divulgação Espírita Allan Kardec) e da KARDECPEDIA, plataforma grátis para estudos das obras de Allan Kardec. Reúne mais de duzentas aulas de Espiritismo na plataforma KARDECPlay.
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