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A prática da caridade necessariamente envolve um sentimento?
Diálogos com o professor Estudos do IDEAK Transcrições

A prática da caridade necessariamente envolve um sentimento?

Transcrição de Rui Gomes Carneiro, feita sobre parte de um estudo do IDEAK.


Citação: Tema do estudo.
“Retribuir o mal com o bem.”


1. Aprendestes que foi dito: “Amareis o vosso próximo e odiareis os vossos inimigos.” Eu, porém, vos digo: “Amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e caluniam, a fim de serdes filhos do vosso Pai que está nos céus e que faz se levante o Sol para os bons e para os maus e que chova sobre os justos e os injustos. — Porque, se só amardes os que vos amam, qual será a vossa recompensa? Não procedem assim também os publicanos? Se apenas aos vossos irmãos saudardes, que é o que com isso fazeis mais do que os outros? Não fazem outro tanto os pagãos?” (S. Mateus, 5:43–47.)

“Digo-vos que, se a vossa justiça não for mais abundante que a dos escribas e dos fariseus, não entrareis no reino dos céus.” (S. Mateus, 5:20.)

2. “Se somente amardes os que vos amam, que mérito se vos reconhecerá, uma vez que as pessoas de má vida também amam os que as amam? — Se o bem somente o fizerdes aos que vo-lo fazem, que mérito se vos reconhecerá, dado que o mesmo faz a gente de má vida? — Se só emprestardes àqueles de quem possais esperar o mesmo favor, que mérito se vos reconhecerá, quando as pessoas de má vida se entreajudam dessa maneira, para auferir a mesma vantagem? Pelo que vos toca, amai os vossos inimigos, fazei bem a todos e auxiliai sem esperar coisa alguma. Então, muito grande será a vossa recompensa e sereis filhos do Altíssimo, que é bom para os ingratos e até para os maus. — Sede, pois, cheios de misericórdia, como cheio de misericórdia é o vosso Deus.” (S. Lucas, 6:32–36.)

3. Se o amor do próximo constitui o princípio da caridade, amar os inimigos é a mais sublime aplicação desse princípio, porquanto a posse de tal virtude representa uma das maiores vitórias alcançadas contra o egoísmo e o orgulho.

Entretanto, há geralmente equívoco no tocante ao sentido da palavra amar, neste passo. Não pretendeu Jesus, assim falando, que cada um de nós tenha para com o seu inimigo a ternura que dispensa a um irmão ou amigo. A ternura pressupõe confiança; ora, ninguém pode depositar confiança numa pessoa, sabendo que esta lhe quer mal; ninguém pode ter para com ela expansões de amizade, sabendo-a capaz de abusar dessa atitude. Entre pessoas que desconfiam umas das outras, não pode haver essas manifestações de simpatia que existem entre as que comungam nas mesmas ideias. Enfim, ninguém pode sentir, em estar com um inimigo, prazer igual ao que sente na companhia de um amigo.

A diversidade na maneira de sentir, nessas duas circunstâncias diferentes, resulta mesmo de uma lei física: a da assimilação e da repulsão dos fluidos. O pensamento malévolo determina uma corrente fluídica que impressiona penosamente. O pensamento benévolo nos envolve num agradável eflúvio. Daí a diferença das sensações que se experimentam à aproximação de um amigo ou de um inimigo. Amar os inimigos não pode, pois, significar que não se deva estabelecer diferença alguma entre eles e os amigos. Se este preceito parece de difícil prática, impossível mesmo, é apenas por entender-se falsamente que ele manda se dê no coração, assim ao amigo, como ao inimigo, o mesmo lugar. Uma vez que a pobreza da linguagem humana obriga a que nos sirvamos do mesmo termo para exprimir matizes diversos de um sentimento, à razão cabe estabelecer as diferenças, conforme os casos.

Amar os inimigos não é, portanto, ter-lhes uma afeição que não está na natureza, visto que o contato de um inimigo nos faz bater o coração de modo muito diverso do seu bater, ao contato de um amigo. Amar os inimigos é não lhes guardar ódio, nem rancor, nem desejos de vingança; é perdoar-lhes, sem pensamento oculto e sem condições, o mal que nos causem; é não opor nenhum obstáculo à reconciliação com eles; é desejar-lhes o bem e não o mal; é experimentar júbilo, em vez de pesar, com o bem que lhes advenha; é socorrê-los, em se apresentando ocasião; é abster-se, quer por palavras, quer por atos, de tudo o que os possa prejudicar; é, finalmente, retribuir-lhes sempre o mal com o bem, sem a intenção de os humilhar. Quem assim procede preenche as condições do mandamento: amai os vossos inimigos.


Comentários com Cosme Massi*.

Aluno: Quero propor duas questões para reflexão, a respeito do texto apresentado.

A primeira é sobre a frase com que Kardec inicia o comentário, dizendo que — “Se o amor do próximo constitui o princípio da caridade, amar os inimigos é a mais sublime aplicação desse princípio, porquanto a posse de tal virtude representa uma das maiores vitórias alcançadas contra o egoísmo e o orgulho.” Essa ideia de amor ao próximo como princípio da caridade exigiria de nós um sentimento para a prática da caridade, exigiria que o sentimento do amor já estivesse minimamente desenvolvido em nós, mas a ideia da caridade como a prática do bem desinteressado muitas vezes sugere que não haveria ainda necessidade do sentimento para que o bem fosse realizado no sentido caritativo.

Eu sempre li esse texto no sentido mais comportamental do que no sentido dado com emoções e sentimentos, por conta do comentário feito por Allan Kardec lá no quarto parágrafo, em que ele diz assim: “é finalmente retribuir-lhes sempre o mal com o bem, sem a intenção de os humilhar. Quem assim procede, preenche as condições do mandamento: amai os vossos inimigos.”

Parece aqui, nessa parte final, que o comportamento pelo dever, ou pelo menos com a consciência do dever, já seria suficiente para nós cumprirmos esse mandamento que o Cristo coloca como desafio a nós.

Gostaria de ouvi-lo, professor.

Professor Cosme: Eu gosto muito de usar a teoria da ação para ler uma proposta de mandamento ou de virtude; toda ação envolve os três domínios fundamentais da filosofia, ou seja, o domínio cognitivo, o domínio afetivo e o domínio comportamental, isto é, a razão, os sentimentos e a vontade.

Eu acredito que esses elementos sejam, de certa maneira, inseparáveis, e que a conquista do cumprimento do mandamento amar aos inimigos tem que se dar nesses três domínios. Eu faço até a metáfora de um tripé: esses três elementos são como um tripé que mantém uma mesa no plano e equilibrada, e para isso as três pernas têm que estar do mesmo tamanho, elas precisam desenvolver juntas para que a mesa mantenha o seu plano, o seu equilíbrio. É claro que, na conquista da virtude, alguns elementos podem inicialmente se desenvolver mais que o outro, mas os três estão presentes.

Um indivíduo pode começar a prática da virtude do perdão pela atitude diante de uma agressão. Por exemplo, não se vingar, não agredir, não falar mal; então ele pode começar por aí, não vai falar mal, não vai agredir, mas ele vai perceber que a razão foi importante, a vontade o ajudou a não fazer nada disso; ele pode ter usado, inclusive, a razão para apoiar a vontade, dando os argumentos: “Kardec já demonstrou que se eu agredir, se eu me vingar, eu vou ser igual a ele”!

Então esse indivíduo está usando da razão, pensando por exemplo, “Eu quero ser diferente dele, eu tenho que ser maior que ele, portanto eu não vou agredir”. Desta forma, usa-se a razão para dar os fundamentos para que, na ação, a vontade bloqueie sua língua e a sua mão para não falar, não agredir.

Mas a pessoa precisa eliminar os sentimentos que acompanham a ação! Por isso Kardec vai dando vários exemplos no texto, exemplos que também envolvem o sentimento, ou seja, não se pode ter ódio, ter rancor, enfim, vai ser preciso atuar também no nível do sentimento.

É claro que na prática é mais comum começar pela ação, já que o elemento mais fácil é a razão, não é? Porque a razão é que vai dar os argumentos para que a vontade possa atuar. Os argumentos podem ser “puxa, não vale a pena agredir”, “se eu agredir, serei igual a ele”, “a agressão sempre me deixa passando muito mal”, “quando eu agrido eu fico com dor de cabeça, eu fico com dor de barriga, eu me sinto mal”, etc. Ou seja, a pessoa vai usando a razão para dar fundamentos a uma ação que contrarie o que normalmente se fazia. É a parte cognitiva, e aí usa-se a razão, o conhecimento doutrinário, o conhecimento da verdade, e assim se vão dando os elementos para o indivíduo não gritar, não dar o soco no sujeito, não agredir, não falar mal dele.

Isso é usar a razão como suporte para a vontade. Aí vem a vontade e segura a mão, segura a língua. Mas lá dentro ainda a pessoa remói desejos ruins; só está segurando.

Pode ser que o plano do sentimento seja o último a acontecer. Aí varia de indivíduo para indivíduo, certo? Tem pessoas que já têm um sentimento mais controlado, já se resolvem no plano do sentimento, para essas é mais fácil. Elas têm muito mais elementos para barrar a sua vontade de, às vezes, agredir, porque às vezes a vontade é conduzida apenas pelo bom sentimento.

Eu diria que, lendo o conjunto do texto, não podemos pegar só a última frase do “fazer o bem”. Até porque se entendermos o bem no sentido das leis de Deus, nas leis de Deus já estão lá o amor e a caridade; ou seja, esse fazer o bem já envolve o sentimento! Quando se usa a noção de bem como aquilo que é de acordo com a lei de Deus, e a lei de Deus já é uma lei de amor, então o sentimento está dentro da própria lei. Por isso que eu gosto muito dessa interpretação em que uma virtude qualquer é sempre o resultado de uma ação.

E toda ação envolve necessariamente um sentimento que dá os fins, os objetivos que se quer alcançar; e envolve uma razão, que faz com que a pessoa escolha os meios que usará para atingir aqueles fins, aqueles objetivos; e, é claro, a vontade para a pessoa executar. Adota-se esse meio e os executa, e aquele fim será atingido.

Por isso eu acredito que a visão de virtude como ação é uma visão compatível com as três dimensões aceitas ao longo da história da filosofia, que didaticamente nos ajudam muito na compreensão. Lembrando que isso é uma visão didática, não quer dizer que as coisas têm que ser assim. Como eu disse, cada um é diferente, tem pessoas que se desenvolveram mais no plano dos sentimentos, que têm menos vícios morais, que têm um orgulho mais sob controle, o egoísmo sob controle. E essas pessoas, obviamente, diante de uma ofensa, de uma agressão, vão ter uma conduta diferente, ou vão enfrentar essa agressão de uma forma diferente.

Então ela vai ter uma forma diferente de alcançar o amor aos inimigos em comparação àquele que cultivou muitos sentimentos ruins, e que ao longo de sua experiência como Espírito associou agressões e violências com sentimentos ruins de ódio, de rancor.

Eu gosto desse entendimento da necessidade de cuidar dessas três dimensões, para que possamos, de fato, dominar a nós mesmos.

Ou seja, o sentimento está inerente a isso. Por isso, a importância de cuidarmos daquilo que sentimos, não apenas das ações e da razão; ok?

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*Observação. O texto acima foi retirado de uma exposição de viva voz. Como todo ensino oral, esta colocação pode não ser tão rigorosa com os sentidos das palavras, por efeito da proximidade entre as pessoas que conversam. É preciso, por isso, considerar que as definições dadas podem ser provisórias, e que alguns termos são usados em sentido figurado. Em todo caso, o fundo da mensagem não deixa equívocos.


Cosme Massi é Físico, Doutor e Mestre em Lógica e Filosofia da Ciência pela UNICAMP. Foi professor, pró-reitor e diretor de diversas universidades no Brasil. Ganhador do Prêmio Moinho Santista em Lógica Matemática. Escritor, palestrante e estudioso das obras e do pensamento de Allan Kardec há mais de 30 anos. Idealizador do IDEAK (Instituto de Divulgação Espírita Allan Kardec) e da KARDECPEDIA, plataforma grátis para estudos das obras de Allan Kardec. Reúne mais de duzentas aulas de Espiritismo na plataforma KARDECPlay.


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