Allan Kardec, o Antirracismo Antissocial e a Fábrica de Discórdias
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I. APRESENTAÇÃO.
* Este é, hoje, o sentido primário de “raça”, que tem seu aspecto biológico acentuado. Em um contexto literário geral, porém, tanto pode ser acentuado o caráter biológico, quanto o cultural, caso este em que aqueles “poucos tipos genéricos” poderiam se multiplicar indefinidamente, referindo-se a comunidades, linhagens e até grupos e classes. Detalhe de vibrante interesse é que o termo é ‘quase com certeza’ uma ablação de “geração”, isto é, uma certa regressão, onde o “ge-” teria sido suprimido (ge-ração, ração, raça). Não preciso dizer — mas, se precisar… — que não estou me preocupando diretamente com outras acepções do termo. Previno ainda que é perda de tempo deter-se no sentido puramente biológico ou científico, que traz apenas especificações progressivas da acepção mais comum. Em sua visão estreita, os cientificistas jamais entenderão Kardec a falar, como no n.º 39 do cap. XI da Gênese, em “raças negras, mongólicas, caucásicas”, por exemplo. Consulte-se o dicionário que Allan Kardec mesmo consultava aqui — e constate-se que não deve, popularmente, ter havido mudança semântica, desde sua edição, que era a de 1835, aqui.
2. De fato, Allan Kardec fez suposições sobre os negros que o tempo desmentiu. Kardec cogitou que os negros tivessem limitações cerebrais insuperáveis, e que seus Espíritos precisariam encarnar-se em uma nova raça para terem capacidades mais altas de desenvolvimento cultural, seja em Ciência, Filosofia e Arte, quando estivessem prontos para isso. Quanto à sua raça, transformar-se-ia pela miscigenação, exatamente como e com todas as outras.
De lado os exageros, é inegável que o desenvolvimento geral de muitos povos negros foi mais lento ao passar dos séculos, em comparação com outros. Isto constitui um verdadeiro fenômeno a ser compreendido; e foi ao tentar fazer isso que Allan Kardec produziu, sob caráter ensaístico, a tese a que eu aludi acima. A tese, convém lembrar, era pouco ou nada mais do que sugeria a Frenologia (que seria, por correspondência, a Neuropsicologia da época, da qual, aliás, é incontestável predecessora), que Kardec toma como ponto de partida em seu ensaio.
3. Algumas pessoas, contudo, parecem envergonhar-se do estado de menor desenvolvimento que aqueles povos tinham, e muitos ainda têm. Nunca mencionam isto, que é um fato histórico. Dão a entender que as raças nunca apresentaram ritmos diferentes no progresso, o que é um absurdo. Admiti-lo não implica nenhuma diferença intrínseca; se hoje creem nisso, e por isso ocultam o fato, são eles os racistas. E que dizer, quando este ilícito subterfúgio retórico condena populações, ainda no presente subdesenvolvidas, a enfrentarem por si mesmas dificuldades contra as quais lhes falecem os meios? que, numa palavra, carecem de solidariedade? Ocultar a verdadeira posição de alguém é qualquer coisa outra que levá-lo a sério. Ao mentirem para defender, traem e ofendem, e revelam antes vergonha ou desprezo do que uma sincera admiração.
É por este acintoso contexto que costumam vir ataques sobre um suposto racismo de Allan Kardec e dos Espíritos. Sem nem referir a existência daquele fenômeno social, os inimigos da doutrina, pelo menos enquanto tais, apresentam textos espíritas, nos quais os negros são ditos mais atrasados, como se tratassem de nossos parentes, nós mesmos, nossos vizinhos, etc., e não daqueles povos de vida notadamente rudimentar enquanto tais. Absolutamente, não; os textos são de dois séculos atrás, quando uma autêntica união social das raças ainda não era uma realidade, mas uma exceção, e seu desenvolvimento, radicalmente heterogêneo. Nesta confusão, procedem a uma injustificável identificação de populações de realidades extremamente diversas, e convertem isso em arma contra posições as mais honestas. Fazem, assim, do negro, mero lugar-comum, a serviço forçado de interesses completamente alheios aos alegados no discurso; usam-no contra seus adversários como a mero e oportuno tema, para não dizer coisa pior.
Quanto à tese de Allan Kardec, mesmo em consideração deste contexto havia o erro, é verdade; mas com ele fica óbvio que não havia nenhuma disposição injusta, e o encantamento maligno se esvai. Ocultar o contexto é pura desonestidade.
Há quem diga que os parâmetros ocidentais de intelectualidade para aferir o progresso das raças são etnocêntricos, e, por isso mesmo, inválidos. Mas uma coisa é admitir que o Ocidente não tem todos os conceitos, ou que nem todos os seus conceitos valem universalmente, e outra, que todos eles só têm valor para si mesmo. Isto seria a simples manifestação de um polilogismo, o que é sempre muito mais perigoso do que admitir uma base comum para comparação dos diversos povos. O Espiritismo é incompatível com qualquer polilogismo. Não se poderia afirmar uma distinção tão radical de natureza entre dois povos sem afirmá-la mais especificamente dos indivíduos, de modo a incorrer, assim, num desrespeito da igualdade universal. Levada a tese às últimas consequências, os fatores de distinção acabariam se generalizando e se impondo, por necessidade lógica, em qualquer análise moral, de modo a impedir não apenas uma comparação entre povos, mas também entre dois Espíritos quaisquer, e até de um único Espírito consigo mesmo através dos tempos, de modo que ninguém poderia dizer que será “amanhã melhor do que hoje”. Como última consequência, um modelo de perfeição seria invalidado, e a escala espírita seria subvertida numa espécie de tipologia fortuita, na qual o Espírito puro e o impuro seriam, em tudo, igualmente perfeitos, cada um a seu modo. Sem os conceitos de superioridade e inferioridade de progresso alcançado, o Espiritismo não faz nenhum sentido. Em todo caso, é fácil ver que com um polilogismo incorremos em aporias e paradoxos estúpidos. Já de início não seria descabido perguntar, por exemplo, se esse etnocentrismo relativista não é algo etnocêntrico; e, com efeito, em alguns casos ele parece apenas uma afetação vaidosa de modéstia, que tende a afirmar que as outras raças são 'café com leite'. E nem adiantaria consultarmos outras raças, para verificar se elas, por sua vez, têm alguma forma de etnocentrismo, porque, com premissas polilogísticas, qualquer coisa que nos dissessem seria necessariamente ininteligível. Ainda do ponto de vista espírita, é muito evidente de que classe de Espíritos provém um erro tão nocivo.
4. Allan Kardec não pode ser julgado racista, e nem é porque ele não teve condições de fazer apreciações materiais mais exatas, mas, sim, precisamente, porque ainda que elas fossem perfeitamente exatas, suas concepções de ordem prática não haveriam de mudar em nem uma vírgula: independentemente da visão material que a ciência lhe imprimiu, sua disposição, com relação às raças mais atrasadas, não era senão: opor-se à subjugação, ao constrangimento, à escravização, à intolerância, à discriminação, e, por outro lado, defender que se tivesse com elas, normalmente, todos os tipos de relação. Ele procedeu assim pela simples razão de que não confundia bom senso, nem senso moral, com ciência, como aqueles, hoje, para quem só existe ciência ou nada, para quem, se a ciência diz diferença, é impossível agir com igualdade.
5. Em alguns momentos, evoca-se o conceito de racismo científico como a um verdadeiro deus ex machina para dispensar todo raciocínio e fazer acusações generalizadas sobre o passado, como se usa o racismo estrutural sobre o presente. A ideia essencial do racismo científico é a de que as raças poderiam, de algum modo, ser materialmente hierarquizadas, ou seja, que a ciência poderia aduzir demonstrações de que algumas são em si mesmas melhores ou mais capazes do que outras. Dessa forma, porém, logo se vê que, a priori, “racismo científico” e “racismo” são duas coisas absolutamente diferentes e independentes, pois uma hierarquia material, por si só, em nada determina os comportamentos que estas raças terão entre si, e o racismo, por outro lado, pode sê-lo sem qualquer colorido científico. As hierarquias materiais, enquanto tais, podem inclusive ser usadas para beneficiar aqueles menos favorecidos de natureza. Podemos buscar um caso de uso de tais hierarquias, com destinação virtuosa, e ver que elas, por si mesmas, não são boas nem más. O que primeiro me ocorre como exemplo são as síndromes; há algumas que, sem dúvida, comprometem o desempenho de seus portadores em qualquer experiência da vida. Há as que trazem um comprometimento geral maior, e outras que trazem comprometimento geral menor. Isto é uma noção básica da vida social. Se uma pessoa intencionalmente deixasse um deficiente diante do que sejam circunstâncias normais para pessoas saudáveis, mas obstáculos invencíveis para este deficiente, diríamos no mínimo, daquela pessoa, que é perversa e covarde, e tanto mais indignados ficaríamos quanto maior e mais evidente fosse a dificuldade criada. E que pensaríamos se ela nos dissesse que errados estamos nós, desde que nos baseamos em uma hierarquia de capacidades com fundamento material, e, para piorar, baseando-nos, para julgar, na aparência do suposto deficiente? que o que chamamos de evidência não passara de preconceito? Pense-se o que for, não é possível impugnar a neutralidade moral de uma hierarquia material, por si mesma, sem acarretar consequências desastrosas para a vida social, como acabei de mostrar com o caso do deficiente. Se alguém trouxer qualquer objeção de especialidade, isto é, sugerindo distinções, eu sempre poderei revertê-la contra ele mesmo, pois aqui se trata de uma mesma espécie de coisas — e lembrando sempre: estamos falando a priori, pois tal é, na prática, a condição de Allan Kardec, em despeito da qual ele efetivamente foi acusado. Também, se alguém disser que é injuriosa a comparação hipotética e apriorística com os deficientes, ele será obrigado a injuriar os deficientes em sua demonstração. Em todo caso, ele estará errado, porque a dignidade humana não admite graus. As capacidades podem variar, mas a dignidade é sempre absoluta. Associar uma coisa a outra é abrir as portas para as escravidões, eugenias e massacres de todos os tipos (como hoje se faz com o aborto). Isso por perspectiva apriorística. É claro que, a posteriori, e um a posteriori nostri, a história é toda outra, e hoje admitimos que seria tão ridículo quanto injusto afirmar que as raças se hierarquizam segundo a capacidade. Embora, como princípio, a capacidade nada tenha que ver com a dignidade humana, uma vez que uma capacidade seja estabelecida como uma realidade, isto é, a posteriori, qualquer intenção de reduzi-la é injusta e injuriosa. Este a posteriori e este a priori, que eu alterno com o necessário rigor e por rigorosa necessidade, evidentemente não se referem a qualquer experiência, que poderia significar qualquer coisa, mas, sim, à prova definitiva, que veio a ser uma simples união social autêntica entre as raças, isto é, livre e tendente ao progresso geral.
Em suma, em racismo científico está claro que Allan Kardec incorreu, mas, como provei, isto de modo algum faz dele um racista. O racismo envolve qualquer tipo de injustiça, o que Allan Kardec jamais sugeriu ou admitiu, nem de leve. Afirmar superioridade ou inferioridade intrínsecas de uma raça para outra é injusto apenas atualmente, desde quando nos sabemos, todos a todos, igualmente capazes, ou, pelo menos, que não é em razão de nossas raças que nossas capacidades variam. Justificar a acusação de racismo a Allan Kardec, em suas condições, por apelo ao critério do racismo científico, nunca passará de um sofisma semântico; seria o mesmo de dizer que todo leão-marinho tem juba e gosta de comer zebras.
Ainda assim, como este texto vem mesmo a propósito de fazer justiça a Allan Kardec, devo notar que o racismo científico não chegou a tomar nenhuma presença formal em sua obra, limitando-se a uma mera incidência de momento, porque o único texto em que ele empregou uma tese de tal natureza foi, ao que me consta, um ensaio*, e ensaio não tem valor formal para o pensamento de autor nenhum. De resto, em muitos outros momentos, tanto ele como os Espíritos apenas referiam o óbvio, que é que havia raças menos desenvolvidas do que outras. Isso em nada lhes afirma limitações intrínsecas.
* Pode-se ficar na dúvida a respeito do n.º 831 do Livro dos Espíritos. Mas, ora, só faz sentido ler essas “aptitudes” ou “aptidões” das raças pensando-as a estas isoladamente; assim, devemos imaginar: sem interferência de outras, qual é o conjunto de realizações mais provável para esta raça daqui a dez, vinte, cinquenta anos? Só assim faz sentido pensar em uma aptidão de uma raça. Lembrando: aptidão é, mais do que mera capacidade, uma eminência de realização. Pensar as raças em convivência, aqui na pergunta do n.º 831, seria criar confusão, porque então teríamos a comunicação de aptidões de uma raça para outra. Alguém pode objetar que neste texto os Espíritos estão tratando da convivência, e que, portanto, este pensamento separador é inadequado; que estou como a dizer a um engenheiro civil que seu projeto está em erro, desde que suas paredes são de tijolos, e nenhum tijolo suporta o peso do teto. Respondo que é uma habilidade requisitória para a leitura crítica saber distinguir os momentos abstratos em um pensamento concrecionante. Ora, a pergunta de Allan Kardec, no fundo, comportaria essa objeção pueril, e ele não é culpado: só estava compondo um livro em formato de perguntas e respostas. Em seguida, os Espíritos respondem: sim, mas, segundo a lei natural, nenhum tijolo se entende sozinho no todo; todos serão solidários. Então, de fato, a objeção procede, mas apenas parcialmente: os Espíritos tratam da convivência das raças, mas, Allan Kardec, das condições dessa mesma convivência. Ademais, para mim é evidente que, neste número, o termo raça praticamente não tem nenhum sentido biológico.
6. Como se não bastasse aceitarem implicitamente o princípio de que a dignidade humana depende a priori das capacidades, os acusadores se enterram na incoerência e no desatino ao lastrearem a igualdade dos povos na “ciência de hoje”. Esquecem que, ontem, ontem era “hoje”? Mas concedamos. De que ciência de hoje falam? A biológica? Então pode reduzir-se a Ética à Biologia? Que ciência? A ciência que por definição é mutável e de resultados imprevisíveis? que é passível de controle, de fraude e de falsa representação?
Só reduz o bom senso à ciência quem já não tem nenhum.
Dizer que a ciência julga o que é racismo ou não, é um absurdo palmar. O mesmo, contudo, não se pode dizer do Espiritismo, esta ciência cujos componentes intrinsecamente filosóficos lhe dão argumentos morais de natureza ontológica, suficientes para julgar questões como essa.*
* Sob toda essa apreciação da sensatez de Allan Kardec, naturalmente se sentirá constrangido por sua barbaridade de espírito quem vinha usando, por exemplo, “argumentos científicos a favor do aborto”. Para piorar, há quem diga que o Espiritismo deve ser mudado em razão desses ‘argumentos científicos’, só porque Allan Kardec disse que o Espiritismo deve assimilar os progressos da ciência. Sim, mas em seus contornos materiais, não naquilo que é de sua competência; por isso é que Kardec também disse: “O Espiritismo não é da alçada da ciência”. No mais, convém lembrar que, no que dependesse da “ciência”, o Espiritismo hoje seria enterrado vivo sob o epitáfio de “Pseudociência do século XIX”.
7. Em suma, Allan Kardec era racista, segundo seus acusadores, apenas por não saber o que não teve condições de saber, e, ao mesmo tempo, por não fingir que não sabia o que sabia.
Alguns ainda alegam em “argumento” o fato de Kardec ter dito que, em sua opinião, os brancos são mais belos (pelo link, p. 197 da edição brasileira e p. 184 da francesa (PDF: p. 198)). Como este “argumento” é de uma infantilidade irrisória, apenas tratarei dele no dia em que as circunstâncias lhe conjuguem uma oportunidade mais séria, ou uma criança me pergunte a respeito.
Os argumentos que refuto neste texto foram os únicos que encontrei em discussão. Eu formulei ataques melhores, o que se pode imaginar que não foi difícil, mas, no fim, as refutações seriam as mesmas, e seria perda de tempo entrar neles. Demonstrações de uma tese falsa são necessariamente falsas, e, quando bem entendida, pelas mesmas razões. Ademais, já ficou patente que a principal ‘premissa’ para as acusações é uma motivação injusta e irracional, então haveria até tolice em insistir.
8. A esta altura, qualquer um se perguntará: Se não há crime, por que a denúncia? Muito provavelmente, pela simples razão de que seus acusadores estão a serviço de outra doutrina, como alguns mesmos indicam. Isto sendo um fato, podemos imaginar algumas respostas para a pergunta, uma menos bonita que as outras: desmoralizar uma autoridade, desfigurar o Espiritismo, dividir seus adeptos, e sutilmente converter seguidores para sua doutrina predileta.
Quem preferir, que continue achando normal uma acusação barulhenta, irracional e injusta vinda do nada, empurrada com os argumentos mais pueris.
Alguém pode pensar que não conseguir identificar aquela distinção entre racismo e racismo científico pode ter sido o erro originário dos acusadores. Isto seria animador, porque daria forças à ideia de haver neles boa-fé; no entanto, eles são muito categóricos em apontar racismo propriamente dito até onde não há racismo científico, que, como eu disse, é um lugar só. Estão abaixo de confundir um leão com um leão-marinho. Ainda assim, é verdade que cometem, o tempo todo, o erro de associar, a priori, a dignidade humana às capacidades — e, pior ainda, ao desenvolvimento. Irrefletidos, nem se apercebem de que o “racismo científico” está muito mais longe do racismo do que eles mesmos.
Os acusadores.
9. Uma vez que versões “antirracistas” foram feitas, é óbvio que podem estar por fazer-se outras versões, ao mesmo tempo antimachistas, antihomofóbicas, antitudo. E assim, aos poucos, o Espiritismo de Kardec e dos Espíritos ficará irreconhecível; não porque ele prejudique a quem quer que seja, mas porque tem princípios de consequências sociais que não convêm a certos interesses políticos. E uma reescrita dos nossos textos fundamentais, sob o pretexto de os adaptar aos modismos da época, é o caminho mais fácil para corromper esses princípios.
10. Mas, ora, a doutrina dos Espíritos não foi escrita para ser a moda da primavera de 1857; tampouco foi escrita a fim de satisfazer a interesses políticos de curto, médio ou longo prazo. Ela foi escrita para orientar o homem no caminho de sua própria essência, o único que o fará tão feliz quanto ele pode ser, qualquer que seja o seu tempo. O mesmo não se pode dizer de um “espiritismo” escrito por interesses de um grupo político particular.
Serei mais explícito.
A editora que publicou — até agora apenas duas — versões “antirracistas” de obras de Allan Kardec (e nas quais revelaram uma maestria lógica estonteante*) chama-se “Espíritas à Esquerda”. O que significa isso? O a craseado reduz a expressão francesa à la (mode). Significa espíritas ao modo (ou à moda) da esquerda. Isto é, espíritas segundo as exigências da esquerda, espíritas tais como inteiramente convenientes aos interesses da esquerda.
* Veja-se, por exemplo, a “redação “antirracista” do n.º 3 do cap. XVII do Evangelho segundo o Espiritismo. Originalmente, lê-se:
“O homem de bem é bom, humano e benevolente para com todos, sem distinção de raças, nem de crenças, [grifo de Kardec] porque em todos os homens vê irmãos seus.”
A versão dita antirracista, revelando a argúcia de um Aristóteles, se incomodou e mudou:
“O homem de bem é bom, humano e benevolente para com todos, sem distinção de culturas, nem de crenças, [sem grifo, mesmo, até porque a ideia original foi embora] porque em todos os homens vê irmãos seus.”
Sim, julgaram racista o uso do termo “raça”, que se escrevia bem a propósito de combater a discriminação racial. É com critérios deste quilate que anunciam ao público geral que o Espiritismo era racista — até sua providencial intervenção: louvados sejam!
Há algum tempo que as versões ditas antirracistas estão indisponíveis para download. Terão nossos companheiros percebido que estão errados? Nesse caso, em que profundidade? Tentar corrigir erros de consistência, no emaranhado de confusões em que já estão, seria como tentar novos pedaços no Monstro de Frankenstein, a fim de embelezá-lo. Aliás, que comparação fértil… Só lhe faltariam “fronte cornuda e grande cauda”.
Do modo como se arranja a expressão, o “espírita” toma um papel material e secundário, e “esquerda”, um papel formal e primário. Ou seja, “esquerda” aqui ganha prioridade sobre o “espírita” e, portanto, sobre o Espiritismo. Isto é a subordinação, duplamente louca segundo o bom senso e a lógica, do Espiritismo a interesses políticos particulares. Disso só se pode precipitar um espiritismo à esquerda, cujos princípios serão sempre os da oportunidade do momento. Sabe-se que o discurso de cada grupo político costuma mudar pelo menos a cada quatro anos. A moralidade espírita, contudo, consiste de uma ética permanente, e não de uma dinâmica de regrinhas; os princípios espíritas, quando, e no mais das vezes, bem fundamentados ontologicamente, são expressões de leis divinas, e Deus não é de fazer emendas.
Desde o começo do texto eu falei sobre os acusadores de Allan Kardec e sobre seus compromissos estranhos. Nem tudo que eu digo se refere especificamente aos “Espíritas à Esquerda”. Deles só conheço o nome bem antidiscreto, as duas publicações em questão, e um blog que acabei de descobrir com um interesse soporífero. Como o que me interessa aqui são antes as ideias do que as pessoas, pelo menos a princípio, pois não sou nenhum polemista, trato de modo confuso os acusadores de Kardec, o que, na verdade, faz pouca diferença.
11. Longe de mim desejar qualquer segregação no movimento espírita. Não é próprio do espírita gostar da divisão. E não é isto o que fazem? De repente, com uma publicação, o Livro dos Espíritos e o Evangelho segundo o Espiritismo passaram a ser livros racistas. Ora, eu continuo com eles, e todos que eu conheço, também. Seremos por isso racistas? Pergunto ao leitor de bom senso, porque os companheiros já o afirmaram antes de eu fazer a pergunta.
Havendo novas versões, e bem sucedidas (do que duvido, pois o movimento espírita em geral está mais saturado de romances que edificam do que de uma política que degenera), o movimento espírita logo estaria repleto de conceitos instigadores e limitantes como os de “racista”, “machista”, etc.; neste contexto, os “Espíritas à Esquerda” provavelmente serão os representantes oficiais do Espiritismo moralizado*.
* E assim chegaria a hora de o movimento espírita pagar caro por ter preferido o caminho do Espiritismo sem os Espíritos. As evocações, praticamente abolidas no Brasil, são o recurso poderosíssimo de que o espírita ainda não se vale em sua jornada de desenvolvimento moral, recurso, inclusive, de proteção racional contra o assédio dos maus. Mas ela ainda pode mudar tudo, se ressurgir agora, ainda que tardiamente. A evocação é tão importante, que julgo oportuno demonstrar sua necessidade agora mesmo, e a melhor demonstração é a afirmação de Kardec de que o simples pedido de inspiração já é uma evocação, de modo que todos a fazem, ainda que não o saibam, ainda que o neguem. Então é inútil tentar evitá-la. Mas é preciso que se a faça ‘religiosamente’, segundo as orientações do Livro dos Médiuns, sem o que ela não apenas não funcionará, como ainda será mais uma abertura para as investidas dos maus. Então, há riscos, mas eles serão facilmente obviados sob intenções sinceras e refletidas, e com a união constante que cada grupo deve observar. Além de serem os riscos vencíveis, o bem que ela ocasiona os compensa e também às incertezas.
O movimento precisa ter atenção, se não quiser sair prejudicado, a esses termos aparentemente auxiliares da moral. E é preciso não ser ingênuo. O Espiritismo já tem um repertório conceitual abundante e suficiente para as relações éticas, bem como para um autoconhecimento efetivo (aqui, suficiente apenas por eminência). Deixar de pensar em egoísmo e orgulho, em direitos naturais e deveres naturais, em resignação, em consciência, em provas, em próximo, em leis naturais, etc. etc. etc., para ter como parâmetros o machismo, o racismo, o empoderamento* e coisas que tais, é como querer atravessar um oceano com balões. Que os companheiros o tentem, se quiserem, mas que não nos levem junto. É claro que, a princípio, como categorias morais, estes termos prestariam algum serviço, e não seria preciso fazer uma escolha absoluta. No entanto, quando eles trazem acepções conflitantes com a doutrina, é preciso recuar. Por exemplo, se é racismo ter a habilidade de comparar o progresso de duas coletividades, o Espiritismo é flagrantemente racista. Se é machismo acreditar que é da natureza da mulher tender por si mesma aos cuidados da família, ou que será sobretudo infeliz se tirar a vida de seu próprio filho, o Espiritismo é flagrantemente machista. E que sucederá quando espíritas menos consequentes nos estudos (e, portanto, provavelmente mais enérgicos, pelo princípio de que o vaso mais vazio é o que mais faz barulho) se derem conta de que seus colegas, espíritas à Espiritismo, se encaixam nesses perfis aparentemente malvados? Aliás, nem precisamos esperar, porque, no prefácio da versão “antirracista” do Livro dos Espíritos, já há uma acusação e até uma insinuação. A acusação é de que um “racismo estrutural” é “reproduzido por parte do movimento espírita”; a insinuação eu entendo que fique patente, aí mesmo, de uma generalização da acusação sobre todo o movimento espírita, pois acabaram de dizer, em tom de indignação, que os “cargos de direção” são ocupados sobretudo por brancos*, enquanto os negros “costumam”, — diz o texto, — “na maioria das instituições espíritas, participar apenas como subalternos, coadjuvantes, apoio [sic] às atividades operacionais e principalmente como beneficiários de obras assistencialistas”. Por razões de higiene mental, não posso comentar nenhum desse emaranhado de absurdos.
* Aliás, parecem querer uma igualdade de 50% a 50% entre negros e não negros — num país onde apenas 9,1% da população é negra.
E ainda há quem diga que as exortações de Erasto estão ultrapassadas! Como é de meu repreensível costume, não citarei o texto aqui, mas aproveito para lembrar de uma ideia acutíssima deste grande Espírito, já em 1861, e que aqui cai como luva (e nosso caso exige luvas): o “antissocial” como epíteto, e, provavelmente, o tema fundamental de certa doutrina que declaradamente tem a divisão social por condição de avanço. É impossível não observar, neste antirracismo onipotente e onipresente, que pode caluniar a todos, ver inimigos em tudo, apenas mais uma manifestação das mesmas intenções antissociais denunciadas por Erasto; e já se torna preciso muito esforço para negar que a doutrina subjacente é a mesma. Em todo caso isto é secundário, pois, para o espírita refletido, entender esta constante já é ao mesmo tempo o escudo e a arma de que necessita. Se no fundo é pela divisão que aqueles trabalham, redobremos as forças na união; se querem desacreditar a sociedade, vamos mostrar como ela tem virtudes; se querem dizer que o homem é incapaz do bem, vamos mostrar como pode ser bom, e muitos são muito bons. É preciso não ser antissocial, mas o oposto disso. Não se trata de ser ingênuo, como muitos deles são ao inverso, nem de ser imprudente ou fingido, mas o oposto disso.
Eu, que não trabalho pela divisão, até me contento em ver a esquerda militante se envolvendo com o Espiritismo. Que sejam muito bem-vindos; quem sabe se convertam, mesmo. Saber-se-ão convertidos quando seu núcleo axiológico passar a ser a união, e não a separação, não o conflito; quando sentirem que a justiça é um meio, e não um fim. Sim: fazer a justiça não é fazer o bem, é-lhe o contrário. Confundi-lo é como tentar comer até ficar com fome, beber até ter sede. E é isso, em minha opinião, do ponto de vista lógico-psicológico, um dos erros mais fundamentais dos nossos companheiros. Eles não tendem a ser felizes: tendem a fazer justiça. Não veem que estão apenas alimentando seu vício em indignação e raiva. Quando, invece, se permitirem sentimentos genuinamente espiritualizados, o que ultrapassa a mera atmosfera de paz e tranquilidade que até um Stálin tinha com os seus, recuperarão o sentido das coisas e serão mais felizes. Como é que uma pessoa que vê maldade em tudo poderia ser feliz?
* Empoderamento é um termo curioso, quando empregado, como parece ser o propósito, às mulheres, como se as afirmando então independentes. A melhor mulher seria a mulher empoderada. No entanto, a palavra implica um momento em que não haja poder e outro momento no qual haja poder. Se em algum momento não o tinha, é porque ela não o tem por si mesma. Se não o tem por si mesma, não pode tê-lo dado a si mesma. Então, quem lho deu? Deus, a natureza, ou — ai, ai, ai! — o homem? Essa é a independência mais dependente que eu já vi.
12. Na p. 13 da versão inaugural do Livro dos Espíritos às avessas, ainda no Prefácio do Espíritas à Esquerda, lemos:
“Allan Kardec, no livro A gênese, afirma que a ciência e o espiritismo devem avançar juntos. Asseverou, também, que a doutrina espírita não está completa e que não deve submeter-se à crença cega, mas, ao contrário, é recomendado o seu exame, não nos dispensando ao trabalho de observação, pesquisa e pensamento crítico.”
Tempo. “Não está completa”, dizem. E, genialmente, entendem com isso incumbir-se da missão de completá-la com o moralismo retroprogressista. De fato, assim o Espiritismo ficará perfeito. Inclusive, estamos vendo como eles estão aptos para qualquer “trabalho de observação, pesquisa e pensamento crítico”.
Não comentarei todos os erros e pré-erros desse trecho, nem do seguinte. —
“É nesse sentido que apresentamos as propostas de redação antirracistas, para que o estudo e a reflexão sobre o racismo científico do século XIX, que permeia os textos kardecistas, seja amplamente debatido sem dogmatismo doutrinário, e o racismo estrutural da sociedade brasileira atual, muitas vezes reproduzido por parte do movimento espírita, possa ser efetivamente combatido.” [Destaque meu.]
Em primeiro lugar, este é um dos parágrafos mais mal escritos que já vi. Simplificando-o:
“Apresentamos…propostas…para que o estudo e a reflexão sobre o racismo científico…seja…debatido…e o racismo estrutural…efetivamente combatido”. Já estão tão acostumados a não pensar enquanto propagam sua ideologia, o que, aliás, parece ser um requisito, que agora a oferecem em palavras sortidas. Parece-me estar lendo uma sopa de letrinhas. Pelo menos, uma sopa de letrinhas podemos engolir.
Em segundo lugar, este é um dos parágrafos mais irracionais que já li. Mas antes de continuar, permitam-me uma explicação, até para recuperar o ar. Quando se fala em argumento de autoridade, não se deve fugir dele como de um monstro. De lado o princípio óbvio, que deve ser ministrado pelo bom senso, de que o argumento de autoridade não vale como demonstração objetiva, ele pode ser, por outro lado, não só lógica-, mas também ontologicamente válido, quando o que se há a provar é uma verdade subjetiva enquanto tal. O ‘pensamento’ de um autor é em si mesmo uma verdade subjetiva. Considere-se o seguinte exemplo:
Einstein afirmava a teoria da relatividade geral; logo, a teoria é verdadeira.
Isso é um sofisma.
Einstein afirmava a teoria da relatividade geral; logo, segundo Einstein, a teoria é verdadeira.
Isso é um raciocínio legítimo, e o Espiritismo depende todo dele. O mundo espírita não é conhecido de outra forma. É por isso que a doutrina é espírita: é a doutrina dos Espíritos; trata-se, no aspecto propriamente doutrinário, da descrição da realidade espiritual* segundo as opiniões dos Espíritos. O Espiritismo em grande parte é isto, um conjunto de opiniões (mas então, filosoficamente purificadas). Então, no Espiritismo, a única dificuldade é obter uma opinião legítima. Uma vez obtida, temos configurada a autoridade da doutrina espírita.
Isso é, essencialmente, dar condições a um argumento de autoridade.
* Bem compreendida, aliás, vê-se que a doutrina espírita é a própria realidade subjetiva das manifestações reduzida a uma objetividade ontológica. Esta objetividade ou positividade ontológica é inexoravelmente necessária. Por isso uma Metapsíquica e uma Parapsicologia, por exemplo, ao aplicarem-se ao fenômeno mediúnico, revelam-se meras formas viciosas de Espiritismo, desde que tendem a negar aquele aspecto subjetivo, como se assim procedessem mais cientificamente. É como se tentassem entender o voo de um avião descartando desde início qualquer importância das asas. O Espiritismo, por sua vez, engloba, com equilíbrio notável, todos os aspectos do fenômeno. Quem acha que é fácil mudar ou construir alguma coisa no Espiritismo não tem a menor ideia do que está fazendo.
Por tudo isso, repugnar um dogmatismo doutrinário na leitura de um autor é uma loucura fora da curva. É óbvio que ele deve ser lido segundo ele mesmo, na medida do possível. E, ora, só faz sentido falar em dogmatismo doutrinário quando se fala em efetiva modificação de princípios. Portanto, eis aqui uma confissão de intenção de corrupção doutrinária. Eles escrevinham que um dogmatismo doutrinário é um obstáculo no combate ao racismo. Do modo mais canhestro, mas é o que está escrevinhado. E se a intenção é realmente ter uma versão “antirracista” do livro, a corrupção doutrinária é, então, inevitável.
Ninguém me fale em “adulteração”. O Espiritismo não é gasolina, nem passaporte. Adulterações até funcionam, ainda que mal, ainda que de modo enganoso. Aqui se trata de uma corrupção doutrinária. Corromper é modificar a essência. Modificar a essência é destruir, trocar por outra coisa. Se eu insiro no conjunto doutrinário um princípio que o contradiz, ainda que apenas metodologicamente, tenho aí uma corrupção, e não uma simples adulteração. Espiritismo à esquerda tanto é um caso de adulteração quanto um quadrado com um lado a mais.
Se alguém pretender que minha interpretação é muito extremada, terá que convir, contudo, em que pelo menos uma proposta de abandono da doutrina em benefício do retroprogressismo é manifesta e inocultável. E aqui eu já estaria concedendo não apenas uma tese, mas parte do meu cérebro.
Em duas notas posteriores, quando defendem a supressão de dois números inteiros do livro, os espíritas à esquerda ainda falam que não deve haver sacralização* dos textos kardequianos. Ora, são eles que sacralizam Allan Kardec, quando, ao invés de deixá-lo, e aos Espíritos, dizendo o que dizem, julgam que é apenas parasitando a sua obra que podem tratar de Espiritismo.
* Aliás, é interessante observar que ideias como as de mitologia e politeísmo têm, do ponto de vista psicológico, muito o que fazer na explicação dessa obsessão por comprovar a onipresença do racismo. Nessa linha, um antissocial atribuir o racismo a uma figura que ele mesmo admire, como Allan Kardec, se se considera espírita, seria uma espécie de consagração — ou sacralização; e o antissocial assim se sacralizará também a si mesmo, tornando-se o ministro do ato.
Tenho certeza de que muitos desses espíritas às avessas embarcaram nessas bobagens antissociais pela influência de Herculano Pires, que comparava Marx a Jesus e via em Engels um anjo encarnado, a auxiliá-lo em sua sagrada missão. Não acho que Herculano Pires tivesse uma grande inteligência, embora não fosse nenhum tolo, mas estou certo de que ele tinha moral. Suas pulgas parecem não ter nem uma coisa, nem outra. Se tivessem qualquer uma*, duvido muito de que estivessem neste projeto de destruição da doutrina, como sei que o Herculano não estaria. Confundem sua posição, que durou pelo século XX, com esse lixo ideológico de hoje, que devora mais cérebros do que um zumbi de cinema.
* Falo da moral em nível intelectual, bem entendido. Longe de mim negar as virtudes que cada uma dessas pessoas certamente tem em sua vida prática.
Raciocinando com frieza, em contexto brasileiro, vemos, por um lado, um grupo de antissociais corrompendo a doutrina e, por outro, juízes que advogam, por exemplo, o banimento da brincadeira “ou está solto ou está armado”; que acha que “escravo” é uma palavra que denota alguma voluntariedade, e que portanto devemos preferir “escravizado”, etc. — é justo nos perguntemos: quão longe o Espiritismo à Espiritismo está de ser novamente proibido no Brasil? Acho que a distância não é longa. Mas que o façam. Os Espíritos nos dizem que apenas uma coisa é certa: aproxima-se um tempo em que a mediunidade será incontrolável. Os ditadores não terão controle sequer de si mesmos. Crê-se que o status quo treme diante de uma inteligência artificial à la “Skynet”, ou de um globalismo tirânico, mas a verdadeira transformação será positiva, e acarretará, entre outras coisas, uma abertura mediúnica inaudita. O tirano se desmanchará antes de promulgar suas tolices e crueldades. Quem usa a mediunidade para construir o futuro, e não para impossibilitá-lo, deve estar consciente disso. Os bons Espíritos não dormem. Os maus procuram iludir-se, achando que têm livre o terreno, mas todos os seus passos são contados.
Outro ‘racista’ digno de lembrança.
13. Quero agora lembrar de um homem que tinha palavras muito grosseiras sobre alguns povos africanos, e que os tratava como seres em um estado inferior. Ele, que chegava a escrever a palavra “selvagens”, lhes falava, a fim de reafirmar sua autoridade: “Sou seu irmão, é verdade, mas seu irmão mais velho.” Expressão esta de racismo hediondo, diriam nossos acusadores; eu, contudo, vejo nela a mais alta sublimidade. O autor da frase é um médico alemão, de nome Albert Schweitzer, que dedicou nada menos do que cinquenta anos de sua vida a tratar africanos em Lambarenê, no Gabão, sob as mais terríveis dificuldades — quem quiser, aproveite suas autobiografias. Esqueceremos isso para escandalizar-nos com meras palavras, e dizer que ele era racista?*
* Aliás, devo ter usado o exemplo errado, pois os acusadores, pelo menos os editores à esquerda, com aquela lógica que lhes é peculiar, não viram tanto problema assim na palavra “selvagens”, mantendo quase todas as suas ocorrências. No prefácio da sua versão do Livro dos Espíritos eles até mencionam este fato, usando a desculpa inacreditável de que por enquanto estão apenas seguindo as referências do conhecido TAC de 2007. Seria estranho pensar que eles não levaram a sério sua própria proposta (confronte-se a p. 11, par. 2, contra p. 13, última linha e seguintes). Já não pareceria estranho se pensássemos que a proposta real era somente a de já criar certa confusão e, ao mesmo tempo, preparar o terreno para a reformulação da doutrina em seu espiritismo novo, antissocial a gosto, um espiritismo do zero à esquerda. Lembrando, aliás, o que acabo de falar sobre a mediunidade, que hoje se pratica pela metade, é de interesse notar que essa grande reformulação seguiria totalmente alheia aos Espíritos. Será que os receiam*? Será que acreditam expor-se menos? Em todo caso, isto é uma dica para os espíritas sobre aquilo que eles deveriam buscar.
* Recentemente, alguém, cujo nome prefiro não mencionar, encetou um projeto de reformulação do Livro dos Espíritos com a participação de alguns Espíritos. As respostas que obtinha evidentemente provinham de Espíritos inferiores. Um dos princípios de sua nova doutrina era que não há Espíritos “superiores” nem “inferiores”. Esta pode ir para a lista de artifícios dos Espíritos inferiores. Fico muito contente em ver que o projeto foi abandonado (pelo menos sumiu da internet), o que sugere que os envolvidos escaparam da obsessão. Em suas versões dos textos espíritas, nossos companheiros preferidos aproveitaram todas as oportunidades que o TAC lhes ocasionou para suprimir a ideia de superioridade e inferioridade no progresso.
O antirracismo antidoutrinário.
14. Até agora nós analisamos a questão de um ponto de vista estritamente moral. Então vejamos, muito brevemente, porque muito brevemente já basta, se a denúncia tem espaço no quadro da doutrina espírita: vamos para o campo lógico-doutrinário, que deveria ser a prioridade de tudo que se atém ao Espiritismo.
Faz sentido, em um contexto espírita, postular que é uma injúria afirmar existirem povos mais atrasados, carentes de solidariedade? Ora, não; e isto implicaria tantas contradições, que eu não saberia por onde começar. Nossos acusadores terão tentado conciliar sua ideia de racismo com os princípios da doutrina? Provavelmente, porque apelam para que desprezemos seus princípios, sob pena de incidirmos no terrível “dogmatismo doutrinário”. É notável que a lógica dos nossos companheiros só funcione na medida que afete seus temas ideológicos; fora disso, nada lhes é impossível. Para mim restam, no entanto, insuperáveis dificuldades.
Para começar, não é a própria doutrina um exercício imenso deste princípio, em que os Espíritos superiores se dedicam à grande raça terrena, ainda nos primeiros graus do progresso? Aliás, considerando a pluralidade de mundos habitados, e que os Espíritos dizem que somos todos, juntos, a grande humanidade, e dizem ainda que os corpos são mais sutis nos mundos superiores, não seria o Espiritismo a primeira doutrina, segundo os critérios antissociais, defensora do racismo intergaláctico? mais do que isso, a fundadora do racismo fluídico semimaterial, porque afirma diferenças de perispíritos? Não será Deus, que criou isso tudo, o racista supremo? Que fará dele o partido?
Ora, para que aquilo fosse uma injúria, seria preciso que a comparação fosse um mal por si mesmo. Mas isto é um erro, que implicaria que um Espírito não pudesse aprender com outro, não, pelo menos, sob pena de incorrer no mal. Ele ficaria entre a maldade e a ignorância eterna.
Ou seria preciso que o inferior na comparação necessariamente se sentisse ofendido com ela. Outro erro, que faria do orgulho algo essencial.
Ou seria preciso que a simplicidade e a ignorância fossem um mal. Outro erro, que implicaria a maldade inseparável da criação.
Ou seria preciso que não houvesse, na realidade, “inferioridade” ou “superioridade” entre os Espíritos, senão meras “diferenças”. Mas, então, as contradições nas comunicações mediúnicas seriam insolúveis, e a doutrina espírita seria impossível: não haveria uma verdade a ser desvendada nessas contradições, pois cada Espírito teria a sua própria realidade, absoluta por si mesma. O Espírito bom e o Espírito imperfeito dariam opiniões sempre equivalentes. Como consequência mais profunda, além de impossível, a doutrina espírita seria indesejável, pois a sabedoria e a ignorância, a perfeição e o erro, a honestidade e a má-fé, etc., seriam equivalentes, e disparate seria desejar mais uma coisa do que outra. Não se pode objetar contra mim que estou montando um espantalho, pois é justamente de distinções como as que apresentei que consistem a superioridade e a inferioridade no Espiritismo, e nenhum espírita no mundo discordaria disso.
Como podemos ver, cada erro desses implicaria outro, e mais outro, até que o Espiritismo ficasse ao inverso e de ponta-cabeça. Talvez isto tudo não seja problema, e eu apenas sofra de dogmatismo doutrinário crônico.
15. Entendo que algumas pessoas julguem indelicado atribuírem a seus ascendentes um adiantamento, em comparação com outras linhagens, e podem julgá-lo mesmo um traço de orgulho, razão por que incorrem no erro de admitir que todas as raças vieram se desenvolvendo homogeneamente ao longo da história. Essas pessoas têm, sem dúvida, o mérito da boa-fé e da sensibilidade. No entanto, é sobre essa fragilidade que os maus operam, provando que nenhum erro passa impune. A verdade é que essas pessoas mais delicadas julgam mal algumas coisas. Em primeiro lugar, erram em presumir que seus próximos não sejam tão bons quanto podem. Nós devemos sempre tratar as pessoas como se fossem tão boas quanto podem ser, e não presumindo que elas tenham defeitos — por exemplo, um orgulho de raça. Isto seria uma falta de caridade. Apenas devemos presumir limitações em outrem na medida dada pela prudência. Se uma pessoa não tem nenhum compromisso com o orgulho, ou com qualquer paixão vã, uma verdade, ainda que pouco lisonjeira, não lhe causará o menor incômodo, antes a animará. Essa é a perspectiva moral. Do ponto de vista intelectual, pode haver o erro de crer que a linhagem atual é uma indicação certa de ancestralidade espiritual, dado o princípio de que os Espíritos tendem a reencarnar em uma mesma comunidade, para aproveitar, no progresso, a força de sua simpatia. Mas, ora, isto é apenas um princípio mais ou menos geral, que não pode de modo algum considerar-se absoluto.
O fato é que esses escrúpulos, respeitáveis em si mesmos, não passam de um exagero — no qual, felizmente, poucos incorrem. E isto não surpreende. Pois que espírita não se sente constantemente humilhado diante de um desses Espíritos de assombrosa envergadura, a quem venera e a quem deseja alcançar, o que é tanto mais suplicioso* quanto mais distante dele está? Isto, naturalmente, cria em nós uma incurável identificação com a fragilidade, identificação que não é imobilizadora, mas, ao contrário, estimulante. Então, para qualquer espírita de certa experiência, ainda que houvesse raça selvagem sobre a Terra, nenhum motivo de orgulho lhe apareceria, porque se sente ele mesmo um selvagem. É este o nosso peculiar ‘complexo’, sob cujo jugo é impossível não vermos um verdadeiro irmão em quem quer que nos apareça — e tanto mais quanto mais fraco. Então, para o espírita bem entendido, o reconhecimento de uma inferioridade não é nenhuma desonra imperdoável — é, ao contrário, uma condição para um progresso consistente e uma felicidade verdadeira.
* Como tais sentimentos aparentemente não são da experiência dos acusadores, devo explicar que os termos “humilhado” e “suplicioso” aqui se aplicam em sentido virtuoso, de quem se sabe pequeno, sabe que isto é natural, pois Deus o quis assim, e que tem ânsia de subir aos degraus mais elevados do progresso. Aquela humilhação é uma ardente admiração; aquele suplício é uma febril ansiedade. Que não interpretem viciosamente minhas palavras, e não me acusem de uma contradição que não cometo.
16. A incriminação de racismo, na doutrina, tem não apenas implicações morais, mas também lógicas. Pelo lado moral, ficou evidente que Kardec, muito antes de racista por causa da ciência, era igualitário apesar da ciência, pelo que é evidente absurdo pretender nele qualquer má disposição para com qualquer raça. Depois, as implicações lógicas também desabonam a incriminação. Como vimos, não só o Espiritismo estaria em contradição consigo mesmo, caso assumisse um verdadeiro racismo, como também os critérios da acusação feita entram em contradição com o Espiritismo.
III. SÍNTESE
Cujo princípio nasceu como uma nota
ao meu parágrafo sobre a observação de Erasto.
Olhando para as discussões atuais, é evidente que emerge, como um verdadeiro gênero de fenômenos, uma série de propostas que têm de comum o seu fundo duplamente apelativo e autocontraditório: um socialismo antissocial, um antirracismo frequentemente racista, um feminismo que é um machismo travestido (desde que no fundo só admite a mulher na medida em que ela assimile os gostos desenvolvidos pelos homens); um progressismo que caminha contra a natureza; um empoderamento impotente; a tal da apropriação cultural; uma “reparação social do negro”, que implica que ele é um depravado; nessa linha, as “cotas raciais”, que presumem sua incapacidade; uma família sem finalidade específica; uma educação sexual de crianças — etc., etc., etc. É óbvio que estamos diante de uma fábrica de discórdias, que teria uma vida efêmera sem a vaidosa leviandade que cede aos apelos fáceis, as más paixões que falsificam um sentido para qualquer coisa, e a irreflexão que sempre absolutiza a primeira ideia que lhe aparece. Todas aquelas posições, que se poderiam chamar de temas ideológicos, enquanto matéria explícita de discussão, e motivos ideológicos, quando presentes subsuinamente em filmes, anúncios, etc., foram encomendadas sob medida para serem, ao mesmo tempo, evidentemente insustentáveis e sensivelmente apelativas; é justamente contra este tipo de ideia que Erasto já se voltava 'energicamente' em 1861, quando a palavra "comunismo" era menos tímida do que hoje. Elas são armadilhas cruéis, e caem sob sua tortura tanto aquele que as adota (ou por elas faz-se adotar) como aquele que crê fazer-lhes combate pela mera refutação. Mais do que refutar, é preciso ter um desprezo profundo e positivo por todo esse moralismo destruidor, simplesmente não se distraindo do verdadeiro progresso, do verdadeiro ponto de vista; não aniquilando a razão e o bom senso em nome de uma ciência incontrolável e que só conhece especialidades; não trocando uma Ética bem fundamentada por aparências de moral. Sem isso, cairemos no erro fatal de acreditar que a ORDEM SOCIAL é o eixo do Bem. Não é. E aqui está o ponto mais essencial. O verdadeiro eixo do Bem é a INTEGRIDADE ESPIRITUAL DE CADA UM. A ordem social é um problema totalmente secundário. Nenhum bem e nenhuma justiça custam a quietude da consciência. Não estou aqui inventando prescrições. Tudo o que digo se deduz racionalmente da moral espírita e do exemplo de Allan Kardec, com cuja elevada moralidade seus acusadores são finalmente constrangidos a aprender.
Matheus Henrique
Um espírita
Nem à esquerda, nem à direita,
Só pela verdade, mesmo.
Outros textos do mesmo autor:
— Escala espírita: itinerário evolutivo universal;
— Jurados de morte — e de vida.
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